[Você
pode ler este texto ao som de I Can't
Make You Love Me / Nick of Time]
É a música dela tocando. Ela dita um ritmo que se perdeu. Quando foi que você se perdeu assim? Ela já não sabe mais. Deixou de tentar faz tempo. Não adianta tentar classificar essa história como uma história de amor. Ou uma história de abandono. Ou até uma história de quem assinou um contrato e largou o amor à revelia. Ela abandonou o barco, o bote, o porte e se deixou de lado.
Em meados de tempo algum você me disse que tinha a mais absoluta certeza do que queria. O seu trabalho era prioridade para os outros. Longe de você. Longe dela. Ela queria mesmo era mostrar todo esse amor no peito que ninguém consegue ver. Engraçado isso. Amor se torna angústia quando a gente guarda só pra gente. Bate aqui dentro, acelera os batimentos, não se deixa denunciar. Mas nós somos inquietos. E já que ela não podia fazer com que eu a amasse, ela tinha que se redimir com o mundo. Abraçou a causa do quarto escuro por alguns dias, lamentou-se numa revolta que não durou algumas lágrimas. Mulher geralmente tem esse dom de transformar paixão em dor e dor em sossego. Sufoca não ter com quem dividir. Por isso, eu digo que essa não é uma história de amor. É a história dela e a forma com que ela tragou o sufoco e engoliu a fumaça. E a conta do analista vai para qual dos lados?
Permita-me resenhar o que aconteceu com essa jovem, Doutor. Ela tinha medo das manhãs. As manhãs a obrigavam a admitir a si mesma que falhou miseravelmente nessa causa. Era flagrada a trair-se ao olhar para mim. Eu fiz de tudo. Mas não sabia como curar essa apatia dela pelo mundo. Ela gostava das noites porque toda sombra parecia um vulto. E assim ela sabia que tinha companhia para dormir. Você pode achar sombrio. Eu acho que tem muita esperança nos olhos e nos lábios dela, Doutor. Ela tentou comigo e só. Nunca foi expansiva, nem tímida demais. Ela tinha a dose certa de medo, angústia, alegria e esperança. Receita boa para quem quer contar alguma história um dia. Acho que você consegue acreditar em amores que não se realizaram, mas foram amores. Foi o caso dela. Que amou sozinha e me amou demais. E dominou as noites, perdeu algumas manhãs e chegou à conclusão de que guarda-chuvas furados não servem de nada.
Ainda existem marcas de dedos no piano da minha sala. Ou no piano velhinho da sala dela. Foram os últimos acordes de quem precisava expor. Ela precisou colocar para fora tudo isso para se dar conta de que o problema estava bem dentro dela. E haja interpretação de cena para que ela se visse em meio a um filme sem roteiro completo e sem protagonista. Ela era adepta da máquina de datilografar. Cada letra marcada em alto relevo num papel timbrado. Figura clássica, figura básica. E quando a chuva apertou e os pingos a molharam, ela desistiu. Não foi feita a gancho de história. É a história dela e não alguma outra história que você encontra por aí. E eu tenho a minha parcela de culpa por não conseguir correspondê-la. Mas é que vivemos em épocas diferentes e nossos amores não se cruzam porque guardamos aqui dentro e renunciamos a exposição.
Ela anda por aí. Em cada esboço que se faça sobre a sua história. Essa menina faz parte da sombra de muitas mulheres que rabiscaram alguma coisa para falar de amor. Tem um sabor agridoce nos lábios e os olhos continuam enxergando companhia em noites despretensiosas. O sorriso dela foi talhado a ferro e fogo. E acredito que não há analista ou borracha nesse mundo que a façam apagar o sorriso do rosto. Ela é uma mulher real. E, pra dizer a verdade, essa menina é o passado de toda mulher que um dia amou alguém.
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